Quem é o responsável?

Trabalho apresentado em sala de aula no ano de 2006.

Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul. Faculdade de Teologia. Disciplina: Exegese do Antigo Testamento – III. Professor: Frei Rafael Santamaría, OCD. Alunos: André Nicolau Dapper, Leandro Froelich, Valderi da Silva

QUEM É O RESPONSAVEL?[1]

Experiências do sem-solução

O autor do artigo apresenta sua reflexão decorrente de uma afirmação que certa vez escutou: "Deus sempre esta presente, está ao nosso lado nos protegendo". Tendo como provocador esta afirmação, vem-nos a questão profunda de quem seria, como paradigma a história de Jó, a responsabilidade do mal.

Uma estrutura que talvez ajude a ver melhor esta questão é qual a existente relação entre Deus-homem-mundo, homem-mundo-Deus.

De fato, desde o antigo testamento se pode ver a relação complexa que existe entre Deus e o homem quando se tem em vista o mal presente. Muito fácil foi dar a Deus a responsabilidade também do mal (além da do bem), "Javé endureceu corações...", "Javé pode destruir seu povo...", "Javé cria a luz e faz as trevas...", etc. Mas a questão coloca-se na nossa frente, principalmente olhando para Jó: o mal, vem de Deus? Javé que criou tudo, também criou o mal? Também ele seria de responsabilidade de Javé, já que não pode haver um outro deus criador?

Poderíamos tirar a responsabilidade de Deus com a definição de mal de Santo Agostinho, mas há outras idéias de mal, e a que mais se impõe, talvez, no mundo de hoje entre as pessoas simples é a do mal como castigo, colocando um meio termo que seria a justiça. Isto resultará em coisas que julgaríamos "injustas" (Cristo morrer na cruz, vitimas de catástrofes, etc.). neste sentido, todos os que sofrem algum mal tem culpa e não poderiam se queixar. Este é um paradoxo existente em Jó e que freqüentemente volta a tona em nosso mundo.

Jó sente isso e não se cala perante seu Deus, mas não diretamente a Ele, pois é um temente a Deus, mas a uma idéia retribucionista que existe que joga toda a culpa da "desgraça nas costas do desgraçado". Assim, historia de Jó descreve a situação paradoxal dos que confiam em Deus.

Deus: causa – legitima – responsabilidade

Contar com felicidade e desgraça

Na prática parece evidente que Deus mesmo é responsável pela catástrofe, pois ninguém mais dispõem de liberdade e de autoridade para dirigir o curso dos acontecimentos. É esta a reação natural de todos os que foram atingidos e humilhados. A fé na onipotência divina leva por si mesma a todas as teorias que procuram alcançar o equilíbrio moral entre a conduta e o destino do ser humano.

Quando falamos de responsabilidade é importante ter em mente três aspectos: a decisão livre, imputação jurídica moral e o dever de cuidar do próximo e da natureza. E a sua importância tornou-se ainda maior no século XX.

Estas três idéias ajuda-nos a criar uma ordem e orientação básica, por isso, nós desejamos descobrir motivos simples, de preferencia pessoas, que possam ser consideradas como responsáveis por determinado acontecimento. A busca dos responsáveis, naturalmente, nem sempre é positiva, pois a nós, envolvidos, ela nos retira a carga, ou provoca a impressão de que todos os problemas estariam resolvidos depois que os culpados tivessem sido punidos.

Do querer ter razão e do auto - respeito

O livro de Jó foi escrito em vista da culpa e responsabilidade. Ele mostra a teoria da retribuição, onde ninguém, nem os melhores, se encontram isentos de culpa diante de Deus. Por isso, Deus pode desprezar mesmo os nobres, e os fortes afrouxar o cinturão que lhes dá força. Jó, por outro lado, avança sempre mais em direção ao núcleo do problema, deixando atrair para a canoa do problema da retribuição, sabendo que ela leva ao lugar errado. Pois a dramaticidade leva a um circulo vicioso e de defesa a novas acusações.

A mesma coisa acontece com Sofar, que também sente-se injuriado. Com uma visão mais ampla do que seus colegas, também Elifaz reage aqui, ampliando o horizonte das faltas. Em caso de necessidade, chão e terra, seriam hipotecados, outros teriam que suportar sua pobreza, e assim, o poder e posse se reduziria a favorecer seus prediletos.

Em nenhuma passagem Jó se elogia a si próprio como justo. É verdade que ele rejeita a conclusão dos três teólogos, Baldad, Sofar e Elifaz. Mas à ampla e fundamental crítica de Elifaz ele não reage com a rejeição, mas com a reserva. Exige o próprio julgamento de Deus. Ele próprio não praticou nenhum mal, por conseguinte também não praticou sua desgraça, mas diante de Deus Jó mantém o auto - respeito. As primeiras palavras que lhe vêm á boca são de queixa e desesperação, mas depois ele também quer ter clareza sobre o que fez de errado: "Se pequei, que mal te fiz com isto, sentinela dos seres humanos? Por que me toma por alvo?", com isso, quer ser esclarecido do que fez de errado diante Deus, e que Deus deveria apresentar as faltas que Jó teria cometido.

Por quê?

Jó não está a procura de razões, mas lança uma rede de perguntas sobre o porquê dos acontecimentos. Em primeiro lugar é o "porquê" do desespero, da retirada, da recusa: " Por que não morri ainda no seio materno, ou pereci ao sair do ventre?" A isto se acrescenta o "porquê" da dúvida na justiça: "Por que continuam a viver os ímpios e, ao envelhecer, se tronam ainda mais ricos?", e por que sempre é refutada a expectativa de os justos serem recompensados e os injustos castigados?. São estas perguntas que semeiam a discórdia entre os piedosos, porque eles vêem que suas experiências de vida são diferentes. Os que sofrem passam a ser considerados como os perturbadores, os que não se curvam diante do destino. A maldição de Deus - num sistema social que desmorona - passa a ser o desprezo com que as pessoas o tratam.

Hoje acontece exatamente a mesma coisa quando as pessoas caem em desgraça, quando são excluídas da sociedade e têm que assumir a responsabilidade por situação de exceção.

Neste ponto da história de Jó que a fé no Deus único, o criador do mundo, se torna efetiva. A fé significa interpretação do mundo e inclui uma tentativa curiosamente excitante: Nós gostaríamos de entender o mundo, a história e os destinos individuais a partir daquele único, misterioso e amplo ponto de vista que chamamos "Deus", que inclui toda esta infinita teia de problemas.

Mas a operação proposta é perigosa, pois sem querer vão se pondo em discussão não apenas minha existência e a justiça do mundo, mas também se o nosso viver e agir, se o nosso conviver, se uma confiança básica na marcha da história ainda possui realmente algum sentido. Por essa razão também o livro de Jó resume no porquê dirigido a Deus a quebra da confiança no mundo e no próximo.

Sobre o sentido da responsabilidade

Pois aqui Jó lança perguntas para todos os lados, e refere a sua própria situação, por que ele não quer respostas que tirem o peso de seus ombros, mas de uma maneira clara ele próprio quer descobrir os elos da corrente que determina o destino.

Refletem a profunda desorientação existencial de pessoas que não querem se entregar cegamente ao próprio destino. É verdade que Jó experimenta Deus como inimigo, mas ao mesmo tempo não o declara responsável por seu destino.

Jó rompe uma fronteira que se encontra profundamente enraizada na tradição Judaica, e na tradição cristã muçulmana. Ele nega ao seus amigos o direito de falar em nome de Deus, pois ele próprio quer uma resposta do próprio Deus, para descobrir o que ele fez de errado.

Mas qual é o Deus contra quem Jó protesta, e de quem ele exige resposta? Logo se evidencia que para Jó a própria imagem de Deus se divide, pois agora ele não tem mais nenhuma escolha a não ser invocar a Deus, que ele experimenta em primeiro momento como o seu inimigo. Ele exige garantias imediatas, um apelo esperançoso a Deus contra Deus - numa espécie de antecipação utópica do último juízo.

As perguntas são feitas a muitos agentes e sistemas, a sociedade e política, a ciência e medicina, biografias e história, ao agir individual, próprio ou estranho. Mas quando menos estes todos conseguem explicar meu destino concreto, tanto mais a fé dirige uma pergunta ampla a Deus.

Com isso eles não declaram que Deus seja o causador de nossa miséria, mas querem ser ouvidas precisamente na miséria, clamam a ele, pedem ajuda, dele esperam justiça e uma última orientação. Se é com Deus que se encontra a responsabilidade pelo andamento do mundo, então isto significa em primeira linha, que um Deus da bondade e de poder não pode deixar de admitir estas perguntas. Mas aqueles que se queixam e choram, se é que confiam em Deus, também têm que estar dispostos a neste jogo de perguntas e responsabilidade jogarem sua própria existência, até o ponto de não terem mais coisa alguma de perder.

O livro de Jó nos ajuda a entender esta responsabilidade de maneira nova e elementar. Sabemos que não podemos reduzir o problema da responsabilidade à pergunta por uma única causa, referindo a contextos complexos, e sublinhando sua importância. O pensamento da liberdade vive desta idéia da imputação de responsabilidade. Disto faz parte também a solidariedade que assumimos como também os destinos de outras pessoas, ou pelo menos podemos nos empenhar por sua mudança. Por isso seria absurdo afirmar que Deus tenha querido ou provocado a miséria concreta. Mas se Deus cria o mundo e o ser humano, nos aceita, como sua imagem e semelhança, então nós gostaríamos pelo menos de saber o que se encontra do outro lado deste amplo amor e afirmação, o que ele nos custa, ou a que preço fomos comprados.

Só Deus pode responder as perguntas questionáveis de Jó. Portanto, Deus não se omite de sua responsabilidade escondendo as cadeias de causas ou cobrindo os miseráveis de culpa, mas sim se retirando estando ausente. É a pergunta deste princípio que se esconde por trás desta acusação a Deus: Onde é mesmo que Deus se encontra, se precisamente aos miseráveis ele não se manifesta.

Do ouvir e do ver

Antes de nos perguntarmos de quem é a culpa sobre algo, passamos por uma experiência de vergonha. Vergonha porque passamos a nos sentir incomodados e intrigados porque tal coisa não saiu como deveria ou porque passamos por uma situação embaraçosa. Isto ocorre com Jó, pois tudo em sua vida passa a dar errado e ele tenta encontrar uma solução para isto. Na medida em que sentimos vergonha nos deixamos ver pelos outros, nos deixamos conhecer até mesmo por Deus e o próprio Deus se deixa conhecer, inclusive Jó nota isto e pede até uma audiência com Ele.

Em nosso coração temos o que os outros nos falam, sua opinião para conosco, daí tiramos nossa conclusão de culpa, desde aquilo que os outros falam sobre mim, o passado e a memória são o núcleo da discussão. Jó sabe que não cometeu mal algum, tanto que em nenhuma de suas discussões com os três amigos teólogos eles conseguem apontar onde esta a culpa de Jó. Vendo que a discussão deles fracassa, Deus se mostra.

Deus se mostra, como Jó queria, contudo, Deus se mostra em toda sua grandeza (tempestade). Deus se mostra, mas não responde nada a Jó. Pelo contrário, agora Ele se mostra com toda sua força e onipotência (Jó 38,1), trazendo mais perguntas. Deus faz com que Jó veja a realidade, faz com que Jó perceba a criação feita por Deus, onde até o hipopótamo e o crocodilo são criados e subjugados por Deus (Jó 40, 15-41, 26). Por fim Deus põem Jó em seu lugar: criatura. Deus lembra a Jó que homem é homem e que Deus é Deus (Jó 40, 7-14). Aqui notamos que Jó não cometeu falta moral mas sim um pecado teológico (v. 8): Jó quis colocar-se no lugar de Deus, para julgá - lo e condená-lo. Jó queria uma audiência com Deus, porém não fala ou pergunta nada, torna - se pequeno, ele aceita a onipotência de Deus e aprende a ver seu rosto na adversidade e no sofrimento.

Hoje a humanidade se acha maior que Deus, para muitos Ele esta longe (Ele lá e eu aqui, como no discurso dos amigos de Jó). Este é, infelizmente, um sentimento daqueles que perderam de vista o rosto de Deus, no livro de Jó Deus faz com que Jó o veja. Isto faz com que apareça a vergonha de saber que toda nossa vida é sabida por Deus, que não podemos nos esconder, "eu te conhecia só de ouvir. Agora, porém, os meus olhos te vêem. Por isso, eu me retrato e me arrependo, sobre o pó e a cinza" (Jó 42, 5-6). Jó reconhece seu erro, isto traz a tona o tema da esperança, pois sabemos que somos de Deus e somos desejados por Ele. Deste modo o mal que aflige o homem não vem de Deus, mas pode muito bem ser usado para encontrá - lo, já que Deus se manifesta na dor e no sofrimento também, nunca abandonando seus filhos. Deus esta com todos e em todos os momentos, pois se não fosse Ele quem estaria disposto a se solidarizar com os marginalizados?


[1] Apresesntação do artigo de Hermann Häring, tirado da Revista Concilium.

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