O exemplo e o legado de José Mindlin, o homem que amava os livros e o Brasil

Há quem colecione rótulos de vinho. Alguns guardam frascos de perfume. Outros compram discos raros ou fazem origami. No mundo criado por José Mindlin, que morreu em 28 de fevereiro aos 95 anos, todas essas experiências sensoriais foram possíveis. Porque estavam guardadas nos mais de 39 mil títulos reunidos em sua biblioteca. Mindlin não era apenas colecionador. Era um leitor compulsivo. E generoso, pois doou parte valiosa de sua coleção à Universidade de São Paulo, onde poderá ser lida por qualquer um.
jose mindlim Quem vê seu legado espalhado por dezenas de prateleiras não imagina que tudo começou quando Mindlin tinha apenas 13 anos – e seu programa favorito era passear pelos sebos da São Paulo do final dos anos 20. O primeiro exemplar que lhe fez brilhar os olhos foi Discurso sobre a história universal, escrito em 1740 pelo teólogo francês Jacques-Bénigne Bossuet. Como não ganhava mesada, inventou uma forma de fazer dinheiro. Comprava livros raros em sebos onde não eram valorizados para revendê-los a quem pagasse mais. Com o lucro, lá ia o pequeno Mindlin comprar mais livros.
Sua ambição juvenil e seu talento para os negócios já davam uma mostra do futuro. Formado em Direito na Faculdade do Largo São Francisco em 1936, foi por meio da advocacia que Mindlin se tornou empresário. Chamado para redigir um contrato, acabou virando sócio de uma pequena fábrica de pistões e bronzinas. Assim, nascia em 1950 a Metal Leve, mais tarde um gigante de autopeças, com 7 mil funcionários e exportações para mais de 50 países. No comando da empresa, Mindlin se tornou um dos mais importantes líderes empresariais no Brasil. Certa vez, disse que seu epitáfio deveria ser: “Aqui jaz um homem que passou a vida fabricando pistões, sem nunca saber direito o que eram”. Além do humor, Mindlin tinha uma capacidade singular de administração. Mas ela não resistiu à abertura do mercado. Em 1996, ele vendeu a Metal Leve à maior concorrente, a alemã Mahle. “Não é uma história de capitulação, mas o reconhecimento de uma realidade”, afirmou.
Era chegado o momento de Mindlin se dedicar exclusivamente às páginas impressas em papéis grossos, amarelados ou com capas em alto-relevo, todos cheios de histórias. “Papai aproveitava todos os momentos da vida para ler”, diz seu filho, Sérgio Mindlin. “Quando nos levava ao (Colégio) Mackenzie, às 7 horas da manhã, estacionava o carro debaixo de uma árvore e lia até o horário em que entrava no trabalho, às 9 horas.” Com a mulher, Guita, Mindlin foi casado por 68 anos – até a morte dela, em 2006 – e teve quatro filhos (Sérgio, Betty, Diana e Sônia). Quando algum filho se machucava, Guita e Mindlin davam de presente um livro para parar o choro. Como restauradora e encadernadora, Guita cuidava da preservação dos exemplares da biblioteca. “Nunca precisei entrar em casa escondendo um livro dela”, dizia Mindlin. Na família, ninguém lia na mesma velocidade que ele. Estimava que, da coleção, tivesse aproximadamente 6 mil títulos.
Ele amava especialmente as literaturas francesa e brasileira. Na juventude, leu na íntegra A comédia humana, a obra-prima de Honoré de Balzac. Levou algum tempo para criar afeição por Em busca do tempo perdido, o romance de Marcel Proust. No início, rejeitou seu estilo vagaroso. Chegou a fazer uma piada num bate-papo com colegas e professores da faculdade de Direito: “Proust descreve tão bem um sonho que a gente acaba dormindo durante a leitura”. Aconselhado pelo professor Alceu Amoroso Lima, Mindlin resolveu fazer uma nova tentativa – e se apaixonou irremediavelmente pela obra de Proust. Leu-a três vezes e planejava ainda relê-la. Entre os brasileiros, seus preferidos eram Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, e Grande sertão: veredas, de João Guimarães Rosa. “Machado pode ser lido mais cedo. Rosa é uma linguagem que a gente tem de penetrar – mas, depois que penetrou, não larga mais. Lê, relê, reabre a toda hora”, disse em 2006. Na biblioteca, é claro, Mindlin tinha as primeiras edições de Proust e Machado e originais de Guimarães Rosa.
Em 1999, Mindlin decidiu doar à Universidade de São Paulo mais da metade de seu acervo, a parte da coleção conhecida como Brasiliana. Ela reúne cerca de 17 mil títulos, ou 40 mil volumes, formados por estudos, pesquisas, relatos, documentos, poesia e prosa ligados ao Brasil. Após negociações para vencer a burocracia tributária brasileira – que dificulta a doação de acervos privados a órgãos públicos –, foi lançada a pedra fundamental da Brasiliana – Biblioteca Guita e José Mindlin.
A obra foi inicialmente orçada em R$ 39 milhões. Depois, a dimensão foi ampliada para incluir prédios destinados ao Instituto de Estudos Brasileiros (IEB), a uma cafeteria, a uma loja com produtos personalizados e a um auditório para 300 pessoas, numa área total de 20.000 metros quadrados (leia os detalhes na página 3). Calcula-se que o custo total do complexo alcance R$ 85 milhões, e a inauguração está prevista para 2012. Por decisão de Mindlin, o acesso ao acervo deverá ser público e gratuito, com a digitalização de toda a coleção. Ele visitou as obras mais de uma vez e, dias antes de morrer, perguntou sobre seu andamento ao neto Rodrigo Mindlin Loeb, um dos arquitetos responsáveis pelo projeto, ao lado de Eduardo de Almeida. “A gente sempre conversava, ele me dizia como era importante seguir com o projeto, o maior que já havia imaginado, e a felicidade que sentia por isso”, diz Rodrigo.
A morte de Mindlin coincide com a maior crise vivida no mundo das letras desde a prensa de Gutemberg. A revolução digital e os leitores eletrônicos (como o Kindle, da Amazon, ou o iPad, da Apple) têm levado muitos a pôr em xeque o próprio futuro do livro. Questionado sobre a possível extinção do objeto de sua devoção, Mindlin costumava dizer: “Difícil isso acontecer”. Ele afirmava que o livro tem várias vantagens sobre os equipamentos digitais: é mais barato, folheá-lo é um prazer, graças à diagramação, à tipografia, ao charme das anotações à mão, aos autógrafos – e ele não depende da energia de baterias para funcionar, apenas de nosso próprio corpo.
Há cerca de cinco anos, os olhos de Mindlin perderam a capacidade de ler. Filhos, netos, bisnetos, intérpretes contratados e estudantes dispostos tiveram de dar voz às histórias para ele. Mindlin não gostava muito, mas era a única forma de continuar abrindo as portas mágicas de mundos extraordinários. “Não é a mesma coisa”, afirmava. O segredo de sua vitalidade, de que sempre teve certeza, era que “num mundo sem livros seria impossível viver”.

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